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A Justiça brasileira funciona em permanente situação de vulnerabilidade em virtude do congestionamento processual. É um problema histórico e amplamente debatido.  O Judiciário está em crise. Negar o fato equivale a renunciar a uma factível superação.

A morosidade judicial, historicamente, vinha sendo justificada pela insuficiência de recursos. O dado orçamentário é importante, mas não é desejável que a solução fique cingida numa crescente demanda por verbas. Imperioso que se faça uma criteriosa e aprofundada avaliação sobre a atuação do Poder Judiciário na solução dos conflitos, notadamente quando a dinâmica social o submete a uma situação limite.

Como exemplo de uma circunstância extrema, podemos adjetivar o conflito que envolve poupadores e instituições financeiras, oriundo dos planos Bresser (1987), Verão (1989) Collor (1990) e Collor II (1991).

Sem qualquer receio de exagerar, dos milhões de poupadores, apenas uma minoria ingressou com ações individuais, porém suficiente para contribuir com o congestionamento processual, claro que num contexto que agrega outras tantas violações massificadas de direitos, compondo uma contabilidade marcada pela repetição do mesmo julgamento milhares de vezes sem qualquer redução no custo individual do processo.

O direito dos poupadores vem sendo reconhecido nas, quiçá, milhões de ações individuais ajuizadas, desde 1987, consolidando o que chamamos de uma posição pacífica dos tribunais.

Ocorre que a dimensão do litígio e suas implicações sociais somente foram percebidas com nitidez vinte anos após o primeiro plano econômico, quando, às vésperas da prescrição do direito dos poupadores em relação ao Plano Bresser, milhares correram ao Judiciário para reaver os valores. No Rio Grande do Sul os números podem ter chegado a 80 mil processos ajuizados somente na última semana de maio de 2007, cerca de 50 a 60 mil na Capital. Simultaneamente e no mesmo curto período, ingressaram ações coletivas contra todas as instituições financeiras.

As ações coletivas, quase todas, foram julgadas em quatro meses em face da evidente urgência, já que previamente suspenderam todas as ações individuais.  Cada sentença determinou que a instituição financeira ré devolvesse os valores a todos os poupadores lesados, sem a necessidade de utilização do Judiciário, com fixação de prazos e elevadas multas em caso de descumprimento. Decisão aparentemente óbvia, diante de uma jurisprudência consolidada já no milênio passado. A justa expectativa da sociedade era de imediato receber os valores.

Mas não é bem assim que a coisa funciona e é aqui que pretendo pautar a questão, porque o mais resistente dos obstáculos para superarmos o excessivo tempo do processo é a vetusta forma de atuação do Judiciário na solução dos conflitos, fruto de uma organização judiciária anacrônica e uma ideologia processual destoante da demanda por justiça, sem desconsiderar a cultura individual de solução de conflitos que sequer garante os ditos direitos subjetivos.

Apontaria como primeiro componente propulsor desse estado crônico, a existência – podemos assim dizer numa despretensiosa didática- de quatro instâncias na estrutura judiciária nacional: o juiz singular, os tribunais de apelação (2º grau), o STJ (3º grau) e o STF (4º grau). Embora haja restrição recursal em relação aos tribunais superiores, não é muito difícil a utilização desta instância para postergar uma decisão judicial. Não bastasse essa exacerbação patológica do duplo grau, que chega a equivaler, em termos de violação de direitos, à abolição do princípio, temos uma hemorrágica possibilidade de recursos que, manejada por um bom especialista, garante a eternidade do conflito. Aqui entramos no segundo obstáculo a ser removido: o complexo processual que despreza o conteúdo ontológico do direito e trata o fenômeno social como uma abstração dissociada da realidade.

Recentes reformas processuais aos poucos estão removendo as amarras impostas aos operadores do direito, simplificando o processo. A imperiosa reforma do processo coletivo, já tramitando no Congresso Nacional, por meio do PL nº 5.139/2009, abrirá a possibilidade de o Judiciário dimensionar o impacto social de um direito violado, libertando-se do juízo restrito do dano individual ausente de conteúdo emancipatório nos casos de lesões coletivas.

Voltemos ao caso dos planos econômicos, aqui guindado como elemento paradigmático de restrição à justiça rápida. Pois bem, um dos processos coletivos referidos, julgado no primeiro grau em outubro de 2007, foi objeto de apelação e, além desse recurso, o processo sofreu o ataque de mais onze iniciativas judiciais vinculadas: oito de caráter recursal e três ações com origem no segundo grau. No total de doze procedimentos, todos discutindo a forma e não o conteúdo, já que o direito, como já dito, é reconhecido por ampla e histórica jurisprudência. Isso apenas no 2º grau, sem considerar que tais procedimentos certamente se repetirão nos outros dois degraus recursais, diga-se, mais congestionados ainda.

Como visto, o modelo permite que um único processo, após julgado no primeiro grau, exija várias outras decisões dos juízes, todas de conteúdo formal, que podem chegar até quarenta ou mais, contra no máximo quatro que decide o direito material.  Observem como o processo é feito e manejado de forma perversa para evitar o cumprimento de uma decisão judicial, mantendo muitas amarras no poder do juiz.

O caso das cadernetas de poupança é emblemático para demonstrar a iniquidade do sistema processual. O referencial decorre da mobilização das instituições financeiras diante da iminência de terem que devolver tais valores para sociedade lesada. Alardeia a Febraban, diga-se respaldada na lei processual vigente, que irá ao Supremo Tribunal Federal tentar reverter a jurisprudência. Pasmem! Isso é possível! O sistema aqui denunciado possibilita que isso ocorra.

Mais grave são os números divulgados pela Febraban,  noticiando que os bancos perderão 100 bilhões se tiverem que devolver integralmente os valores retidos nos quatro planos econômicos, valores confiscados de uma sociedade em fase de desenvolvimento. Realidade que gera perplexidade quando confrontada com a tese de defesa dos bancos.

A retirada de tal monta do setor produtivo num grave momento recessivo, irradiou seus efeitos negativos nas condições de vida de milhões de pessoas que sofreram a brutalidade das restrições em seus direitos econômicos e sociais. Esse aspecto da violação e do litígio gerado, posto no Judiciário, não pode facilmente ser percebido em uma ação individual tradicional com a mesma visibilidade que está agora sendo desvelada na ação coletiva.

Historiando o caso, numa sintética e crua explanação, podemos dizer que o direito dos poupadores, violado no século XX, antes da queda do muro de Berlim, gerou um conflito judicial que sobreviveu ao século, para não dizer o milênio, viu nascer e morrer o neoliberalismo, testemunhou a criação da internet e está resistindo nesta primeira década do século XXI com singular vigor, habitando durante todos esses anos a morada judicial, estabelecido de forma, lamentavelmente, institucionalizada. Espero que não supere em resistência a vigência das Ordenações Filipinas, que editadas na Idade Média, vigorou até o século XX no Brasil.

É com renovada esperança de mudanças que esperamos a vigência de Código de Processo Coletivo que repagine o Poder Judiciário, instituindo novos instrumentos racionais e efetivos que propõe estabelecer em defesa dos Direitos Econômicos e Sociais.

João Ricardo dos Santos Costa

Presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS. Integrante de La Red Iberoamericana de Jueces. www.redij.org

2 Comments

  • Natalia RH dice:

    Prezado Joao Ricardo (nao tenho til),
    Sou conselheira editorial desta revista e quero agradecer-lhe sinceramente pela sua participaçao em nosso projecto. Tem sido um prazer ler seu artigo em nossa revista. É, por um lado, uma discussao judiciária importante, mas, por outro lado, também é uma análise histórica e política muito relevante para o Brasil. Acho que seu texto conjugou essas partes de uma forma fantástica e clara. De novo: foi um prazer ler suas ideias e análises. Em Distintas Latitudes estamos muito, muito obrigados. Será uma honra para nós tê-lo de novo por aqui.
    Natalia Rivera Hoyos

  • Natalia RH dice:

    Eu quis dizer que estamos muito agradecidos com o senhor (disculpe meu português enferrujado). – Natalia (de novo).

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